Por Carolina de Castro Wanderley
Imagem de João Henrique Le Senechal
Na Idade Média, quando a morte pelas guerras, pela peste e pela fome era um motivo constante de medo, o riso era coletivo e necessário. Através do riso, a população assolada pela iminência do flagelo, desopilava e ressignificava sua condição humana.
O teórico russo do início do século passado, Mikhail Bakhtin, ao tratar do riso medieval, pontua momentos especiais em que os grupos sociais se despiam de controle e de vergonha, renegavam as regras, os valores e as leis e gozavam as festas de então de forma livre: o carnaval, a festa dos loucos, o riso pascal, as festas agrícolas e em vários ritos de passagem.
Para Bakhtin, o riso tinha uma função clara, de temporária subversão social. As autoridades aceitavam esse período convulsivo, para que logo em seguida a normalidade fosse reestabelecida. Era como se a fervura da panela levantasse sua tampa, derramasse um pouco e depois voltasse para baixo, num monótono e brando cozimento.
Até hoje em dia, o riso guarda essa função de propiciar uma visão invertida, criativa e ressignificante da realidade. Comprovação é a permissão legal da paródia, quando uma obra artística é derivada para uma segunda versão, jocosa e às vezes até mesmo satírica. O artista que parodia não precisa pedir permissão do autor da obra parodiada nem lhe pagar nenhum licenciamento: o riso é livre e legalmente aceito.
Voltemos à Idade Média. Naquela época havia uma forma de riso específica, uma forma de manifestação social chamada Charivari. Não se sabe qual a origem deste ritual. O que se sabe é que consistia na reunião de grupos de pessoas de uma mesma comunidade urbana, que disfarçados ou não, mascarados ou não, buscavam causar barulho, gritarias, zombarias e arruaças na frente da casa de determinados indivíduos daquela comunidade, a quem se atribuía uma conduta socialmente repreensível.
Em algumas regiões da Europa Medieval lançava-se excrementos nas vítimas, ou lhes atavam sentadas ao contrário no lombo de animais de carga para andar envergonhadas pela cidade, expostas ao riso de todos.
Os barulhentos manifestantes não se preocupavam com eventuais crimes que as vítimas do Charivari pudessem ter cometido. Eles desejavam escarnecer, somente. Rir à exaustão de pessoas que eram traídas por seus cônjuges e quedavam silentes, maridos que apanhavam de suas mulheres, padrinhos que não presenteavam seus afilhados, frequentadores contumazes de prostíbulos, bêbados, glutões. Em suma, tudo aquilo que era objeto de fofocas, em determinado momento poderia ser motivo de um Charivari.
Como consequência, os alvos das risadas eram sumariamente envergonhados. Alguns mudavam-se de cidade, tamanha humilhação que sofriam. Outros, por vezes, suicidavam-se. George Minois, quando trata da História do riso e do escárnio, traz:“O riso do charivari é típico da tirania do grupo contra a liberdade individual, em uma sociedade corporativa, profundamente anti-individualista”.
Carregado de preconceitos e normas morais, o Charivari, uma manifestação medieval cultural autêntica, mas predatória, nos remete a uma reflexão extremamente contemporânea: a cultura do cancelamento.
Na sociedade da informação em que vivemos, em que todos têm amplo acesso a quaisquer “derrapagens sociais” de indivíduos que ganham dinheiro, fama e por vezes recompensas psicológicas em instantes nas redes sociais, é rápida a possibilidade de o prestígio de uma personalidade de destaque ser transformado em rejeição absoluta por conta de uma opinião, um riso, um comentário ou mesmo em decorrência de um silêncio sobre qualquer assunto espinhoso.
As pautas identitárias da ala progressista da sociedade encabeçam, não há como negar, os cancelamentos virtuais coletivos. Isto teria se iniciado nos Estados Unidos, no movimento #MeToo, em 2017, quando numerosas mulheres famosas denunciavam em suas redes sociais homens que as teriam abusado sexualmente, principalmente da indústria cinematográfica e depois de outros segmentos.
Mas cancelamentos ocorrem em todos os espectros ideológicos e políticos, notadamente por sua facilidade: um movimento de cancelamento se inicia por meio de um telefone celular e em poucas horas pode alcançar dimensões avassaladoras.
Certamente há um lado positivo na rapidez de disseminação de informações pela rede internacional de computadores: é cada vez mais difícil que condutas criminosas por parte de celebridades fiquem impunes, tamanha a pressão social que a internet motiva. Também podemos considerar que a rede propicia uma crescente conscientização acerca de direitos, mobilizando grupos que se identificam. Isso é extremamente bem-vindo!
Mas este texto pretende convidar a uma reflexão sobre o outro lado desta mesma moeda, observando uma semelhança entre o linchamento moral realizado pelo Charivari medieval e os cancelamentos virtuais dos dias de hoje.
Sob uma gosma pasteurizada chamada “liberdade de expressão”, temos visto frequentes casos em que tribunais da internet decidem, à revelia de qualquer processo legal, cancelar pessoas. A despeito de muitas delas cometerem também crimes, os quais podem e devem, repisamos, ser levados ao Judiciário, o cancelamento normalmente é movido por razões banais e reverbera uma chacota, um riso intolerante que não constrói nem acrescenta. Podemos assim o considerar um riso de autodefesa de uma sociedade onde as individualidades são ignoradas, onde as diferenças não podem existir e onde o tecido de sociabilidade está absolutamente esgarçado.
Contudo, a liberdade de expressão não alberga tudo e todos. O tratamento dado às liberdades artísticas e de imprensa é, como deve de fato ser, diverso daquele conferido aos populares portadores de celulares e com acesso à internet. Às pessoas comuns, os “postantes”, devem observar limites a sua sanha de manifestação de opinião.
A Constituição Federal, em seu artigo quinto, assegura os direitos de livre expressão de pensamento, mas por si só já delineia limites: aqueles afeitos aos direitos da personalidade.
Somando-se à Constituição, existem duas leis que balizam a questão: a Lei 12.965/2014, do Marco Civil da Internet, que reforça a proteção aos direitos humanos, ao desenvolvimento pleno da personalidade humana e ao direito de exercício da cidadania efetiva nos meios digitais, e a Lei 13.185/2015, de Combate ao bullying e ao cyberbullying, que busca coibir o uso da internet como meio de constrangimento psicossocial. E, somando-se, há o Projeto de Lei nº 7.582/2014, de autoria da Deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul, que pretende criar mecanismos para coibir os crimes de ódio e intolerância.
Neste projeto legislativo, os crimes de ódio são aqueles que ofendem a vida e a integridade física e são motivados pelas simples diferenças sociais, de origem, sexuais, identitárias, de gênero, etárias, religiosas ou capacitárias. Já os crimes de intolerância são originados nas mesmas diferenças entre as pessoas, mas implicam em violências psicológicas como constrangimentos e humilhações. O texto considera estas práticas crimes, estabelece penas e ainda propõe políticas públicas articulando os entes da Federação e as organizações não-governamentais para criação de uma cultura de respeito.
O Projeto de Lei, como vemos, se origina na necessidade de respeito às diversidades “de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência”, mas, ao garantir e operacionalizar direitos humanos e dignidade da pessoa humana, dá oportunidade concreta de defesa em situações virtuais vexatórias e em linchamentos virtuais.
Atualmente a proposta está aguardando análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. Entendemos que a iniciativa é louvável e que, talvez, em curto espaço de tempo, possamos falar de manifestações como o Charivari como algo meramente ilustrativo de um tempo em que os laços sociais se desfaziam, só transitoriamente, pelo riso.
*Carolina de Castro Wanderley, Advogada, Editora Literária, Doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, Pesquisadora na área de Direito e Literatura, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: carolina@ssebastiao.com.br
Referências:
BAKTHIN, Mikhail Mikhailovitch. 1895-1975.
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 01 mar. 2023.
BRASIL. Lei 13.185 de 6 de nov. de 2015. Combate ao Bullying. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13185.htm. Acesso em 01 mar. 2023.
BRASIL. Lei 12.965 de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em 01 mar. 2023.
BRASIL. Projeto de Lei 7582/2014. Define os crimes de ódio e intolerância e cria mecanismos para coibi-los, nos termos do inciso II do art. 1º e caput do art. 5º da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=616270. Acesso em 01 mar. 2023.
MARTINS, Esther Brito. Linchamento virtual: qual o limite da liberdade de expressão? Disponível em https://editora.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/anais/congresso-internacional-de-ciencias-criminais/assets/edicoes/2020/arquivos/202.pdf. Acesso em 08 abr. 2023.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
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