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A arte educação como instrumento de efetivação dos Direitos Culturais

Recentemente, muita polêmica teve origem na análise dos currículos escolares por parte de pais da ala conservadora da sociedade. Muitos conteúdos foram questionados e por vezes professores foram até interpelados enquanto ensinavam. Questões relacionadas à História, à Geografia e às Artes foram levantadas com notável violência.

Contudo, o que nem todo mundo sabe, é que o conteúdo educacional das escolas, públicas ou privadas é determinado por lei. Além de ser direito constitucional, a educação é objeto de lei específica.

O sistema educacional que hoje é aplicado em nossas escolas é decorrente de um esforço legislativo de meados da década de noventa no século passado. Trata-se da Lei nº 9.394.1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que dividiu o ensino em níveis de Educação Básica e Educação Superior.

A Educação Básica abrange a Educação Infantil (creche e pré-escola), Ensino Fundamental (primeiro ao nono ano, correspondentes, respectivamente, ao antigo primário e ginásio, ou primeiro grau), Ensino Médio (antigo científico, ou segundo grau).

O primeiro artigo da lei já traz que a educação não acontece somente nos bancos escolares, mas em todos os ambientes de convivência do estudante. No artigo segundo, especificamente, há a previsão de que “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, de onde concluímos que, dentre outros objetivos, o estudo prepara para a exercício da cidadania.

O artigo 26 desta lei fala das disciplinas obrigatórias nos currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio: Língua Portuguesa, Matemática, Mundo Físico e Natural, Realidade Social e Política, Arte, Educação Física, Língua Inglesa a partir do sexto ano do Ensino Fundamental.

Ao tratar do ensino das artes, a lei mencionada trazia em seu artigo 26, parágrafo segundo: “o ensino da arte constituirá componente obrigatório, nos diversos níveis da Educação Básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.

Alterações aconteceram no texto oficial com o passar dos anos e, em 2010, o mesmo parágrafo segundo do artigo 26 passou a trazer: “o ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da Educação Básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.

Esta nova redação foi dada pela Lei nº 12.287/2010. Além da alteração que incluiu as expressões regionais no rol das obrigatoriedades curriculares, posteriormente a Lei nº 13.278/2016 determinou no parágrafo sexto do mesmo artigo: “as artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o §2º deste artigo”.

Desta breve análise da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional atualmente vigente, concluímos que o ensino das artes, aí compreendidas as artes visuais, a dança, a música e o teatro, é componente curricular obrigatório na Educação Básica e pretende desenvolver culturalmente o aluno.

Mas afinal, desenvolver culturalmente para quê? Esta pergunta é um revérbero da questão formulada pelo Professor Humberto Cunha Filho, quando ele questiona, a respeito dos direitos culturais: “em que isso é socialmente útil?”. A Constituição Federal já prevê que a garantia do exercício dos direitos culturais é uma obrigação do Estado.

O Estado, através do Plano Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura, deverá cuidar para que o patrimônio cultural brasileiro seja preservado, que a cultura possa circular a todos os cantos do País, que a gestão cultural seja profissionalizada, que todos tenham acesso aos bens culturais e que as diferenças culturais étnicas e regionais sejam respeitadas.

E é no próprio Professor Humberto Cunha Filho que encontramos a resposta: os direitos culturais dotam os indivíduos da capacidade de fruir, discutir e modificar a sociedade, não só no que atine à cultura e ao patrimônio, mas a todos os campos sociais. Em outras palavras, a cultura é o aglutinante social, o que nos faz sentir parte de um todo plural, e nos convoca a participar deste todo de modo singular e digno.

A cultura, assim posto, nos faculta duas operações: (i) perceber a pluralidade social e, por via de consequência, respeitar as diferenças e (ii) exercer a cidadania de modo efetivo.

Agora, lembremo-nos do que dizia o início da Lei de Diretrizes e Bases da Educação citada acima: que a educação objetiva o desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício cidadão e para o mundo do trabalho. E esta lei coloca as artes no currículo obrigatório da Educação Básica.

Defendemos que a Arte Educação, enquanto ensino de artes visuais, de dança, de música e de teatro na Educação Básica, prepara o indivíduo para a fruição da cultura e da memória nacional.

A sensibilização para a reflexão sobre as pluralidades das pessoas e da sociedade, sobre as diversas formas válidas de ver a mesma realidade e o acolhimento da diferença é fomentado pelas disciplinas artísticas.

Um indivíduo sensibilizado para as diferenças exercita melhor a cidadania, convive melhor em sociedade e promove a fraternidade, ou seja, não sai por aí combatendo exposição de arte e pauta de discussão acadêmica. Entende contextos diferentes do seu e, em última análise, contribui para a harmonia social.

Longe de proselitismos, o ensino das artes pode ampliar a visão sobre outras visões e, assim, é ferramenta de efetivação dos Direitos Culturais.

Carolina de Castro Wanderley, advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, pesquisadora na área de Direito e Literatura, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: carolina@ssebastiao.com.br.

Referências:

BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. Arte-educação no Brasil: das origens ao modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acessada em 10.08.2023 em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Lei 9394/1996, Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Acessada em 10.08.2023 em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018.

ARTIGO PUBLICADO EM
https://www.ibdcult.org/post/a-arte-educa%C3%A7%C3%A3o-como-instrumento-de-efetiva%C3%A7%C3%A3o-dos-direitos-culturais
e
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