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João do Rio, o preconceito religioso e a necessidade de afirmação da multiculturalidade nacional

Por CAROLINA DE CASTRO WANDERLEY

A criação da identidade de um país passa, sem a menor sombra de dúvida, pelas versões que dele são criadas a partir da narrativa dos seus escritores. As outras linguagens artísticas também possuem o condão de criar a imagem nacional, mas a literatura é prodigiosa em retratar as mais tênues nuances de hábitos urbanos, práticas rurais, saberes populares, crenças, festas, celebrações, alegrias e tristezas de um povo e, em última análise, sua multiculturalidade.

Por este motivo, a literatura também nos dá a oportunidade de mapear o que existe de intangível na cultura nacional ou, para usarmos o termo juridicamente aplicável, para observar o seu patrimônio imaterial, bem como de perceber os choques axiológicos entre bens culturais.

Na compreensão da religiosidade brasileira, de seu valor como patrimônio cultural e dos vetores de preconceito que a transfixa, há um marco bastante interessante dentro da literatura do século XX: trata-se de João do Rio. Cronista, jornalista e escritor carioca, dotado de uma excêntrica personalidade, questionador das formas sociais do Rio de Janeiro do início do século passado, João Paulo Barreto ou, como se apresentou publicamente, João do Rio, publicou artigos por anos em veículos de comunicação cariocas, criando uma coleção de temas que pintou um retrato das excursões urbanas do autor carioca, como um flâneur da poesia de Baudelaire.

Na obra “As religiões do Rio”, de 1904, João do Rio apresenta uma compilação de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, desenhando um caleidoscópio da realidade carioca da época. O panorama retratado contrapunha a atmosfera de metrópole moderna após a reforma Pereira Passos com uma persistente cidade velha de cortiços e de tipos humanos tão singulares e, neste específico, com suas formas de crença.

O livro rapidamente alçou lugar na galeria das polêmicas por dois motivos: primeiro por enumerar manifestações religiosas escamoteadas pela elite econômica e intelectual do Rio do início do século XX, segundo por abordar de forma realisticamente grotesca e preconceituosa muitas destas religiões, dando o tom a tantos outros pesquisadores das religiões do nosso país.

A apresentação do livro por João do Rio na edição da Livraria Garnier, de certa de 1906, já demonstra o tom impresso: “A religião? Um mysterioso sentimento, mixto de terror e de esperança, a symbolização lugubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equivoco, o medo, a perversidade… O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa. Ao ler os grandes diarios, imagina a gente que está n’um paiz essencialmente catholico, onde alguns mathematicos são positivistas. Entretanto, a cidade pullula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á.”

A obra apresenta relatos a respeito de diversas religiões ou doutrinas da época: a igreja positivista, os espíritas, os evangélicos, os judeus, dentre outros. Um grupo específico, no entanto, nos chama atenção nesta breve análise: falamos do primeiro capítulo do livro, denominado “No mundo dos Feitiços”, que aborda as religiões de matriz africana.

Este capítulo apresenta as práticas do que usa chamar de “os candomblés” da região denominada Pequena África, no antigo centro do Rio de Janeiro, habitado por ex-escravizados e seus descendentes, relegados à pobreza pela estrutura social adotada no país naquele momento. Nestas linhas narrativas, o analfabetismo dentre os pretos habitantes daquela região urbana, a pretensa malignidade do Orixá Exu, a poligamia atribuída aos Orixás, são ainda misturados com visões carregadas de preconceito como a “lombeira secular” dos pretos, a prostituição das filhas de santo, a exploração financeira de quem acorre aos trabalhos religiosos, o charlatanismo, dentre outros.

A despeito do grande valor literário da obra de João do Rio (e, aqui frise-se, não se pretende insinuar menos valia nem mesmo insuflar ânimos de censura), a análise da religiosidade afro-brasileira retratada nos leva a compreender um pouco o lugar de marginalidade ao qual ainda, em 2023, se busca relegar as manifestações como o Candomblé, a Umbanda, e outros. Em outras palavras, João do Rio aqui nos serve como exemplo de como a elite tratava à época as religiões “não oficiais”, as crenças do povo e como a cultura dominante as apresentava.

Muito além da proteção à liberdade constitucional de culto, gravada na Carta Magna quando trata dos direitos fundamentais, as religiões têm valor como representação simbólica do próprio processo sincrético de formação cultural do povo.

No que atine às religiões afro-brasileiras, há um conjunto significativo de cantigas, danças, vestimentas, deidades, objetos ritualísticos, práticas religiosas, comidas, bebidas, representações visuais e práticas comunitárias. Este universo ritual não pode e não deve ser tomado sob o viés do preconceito como tradicionalmente ditado por João do Rio. Assim, quanto mais reconhecidas as manifestações religiosas tradicionais brasileiras como Patrimônio Imaterial, maior ganho cultural coletivo, mas, também maior a valorização individual de cada um dos praticantes das respectivas religiões.

Colocam-se em choque então dois direitos: o de livre expressão artística, que diz que não cabe ao Estado censurar previamente nenhuma manifestação do espírito humano e o de preservação dos sentimentos religiosos, expresso no Código Penal brasileiro em seu artigo 208. Significa dizer que, ao mesmo tempo que é permitido exprimir a arte de qualquer modo e em qualquer forma, há que se atentar em não escarnecer de religião alheia.

No fiel da balança nos surge o bom senso. Contudo, bom senso e senso comum nunca foram a mesma coisa, pelo que nos parece que cabe ao Estado tratar de garantir a efetivação da multiculturalidade no território. Muito além do direito de culto, o exercício da convivência pacífica entre diversos grupos culturais não é somente uma demanda social: é uma necessidade coletiva, democrática.

Michel Wieviorka, no periódico L’Observatoire, revista de políticas culturais, nos traz que “Não é porque uma sociedade é diversa culturalmente, como é o caso da maior parte dos países nos dias de hoje, que nela existam políticas e dispositivos aos quais possamos qualificar como multiculturalistas.” Esta ideia de ações afirmativas das identidades culturais é proposta pelo autor, que convoca a reconhecer particularismos culturais, mas também a oferecer a minorias estruturalmente desfavorecidas mecanismos de compensar sua desvantagem cultural.

Trata-se de uma forma de afirmação da cidadania e dos direitos culturais de grupos específicos como os adeptos de religiões de matriz afro-brasileira, em resumo. Mais do que isto, trata-se de uma necessidade premente em nossa sociedade, em que o rivalismo religioso pulou a cerca, e passou a arar no campo cultural.

*Carolina de Castro Wanderley, advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, pesquisadora na área de Direito e Literatura, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: carolina@ssebastiao.com.br.

Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 01 mar. 2023.

RIO, João do. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: H. Garnier, c. 1906.

WIEVIORKA, Michel. Critique de la diversité culturelle. In L’Observatoire, la revue des politiques culturelles. Grenoble: Carin, 2020. p. 13-16.

ARTIGO PUBLICADO EM

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